Carta – Veto ao Ato Médico

Carta – Veto ao Ato Médico

ENTIDADES MÉDICAS DE MATO GROSSO DO SUL

Senador e Deputado Federal

Campo Grande, 10 de agosto de 2013

Excelentíssimo Sr Senador/ Deputado Federal

As entidades Médicas de Mato Grosso do Sul – Academia de Medicina, Associação Médica, Sindicato dos Médicos, Centros Acadêmicos e Conselho Regional de Medicina – pretendemos por meio deste fornecer subsídios a um melhor entendimento no que tange aos artigos vetados da lei 12.842, de 10 de julho de 2013, que dispõe sobre o exercício da Medicina, pela excelentíssima Presidente da República Dilma Roussef.
Apesar dos 12 anos de extensos trabalhos que envolveram vinte e sete  audiências públicas e sete comissões da Câmara dos Deputados e no Senado, bem como uma ampla discussão com todas as outras profissões de saúde (que já são regulamentadas por lei) em que após consensos firmados com aqueles conselhos efetuaram-se readequações que resultaram no texto final apresentado, acreditamos que houve um mal entendido na interpretação dos referidos artigos por parte da excelentíssima Presidente.
Dessa forma, pensando em contribuir com vossa decisão a respeito de matéria de extrema importância ao Povo Brasileiro, passaremos a discorrer sobre os  artigos, a motivação dos vetos, bem como, as  devidas objeções:

Artigo 4°., que versa sobre as atividades privativas do médico, os seguintes incisos foram vetados:
1°. Veto: I – formulação do diagnóstico nosológico e respectiva prescrição terapêutica

“O texto inviabiliza a manutenção de ações preconizadas em protocolos e diretrizes clínicas estabelecidas no Sistema Único de Saúde e em rotinas e protocolos consagrados nos estabelecimentos privados de saúde. Da forma como foi redigido, o inciso I impediria a continuidade de inúmeros programas do Sistema Único de Saúde que funcionam a partir da atuação integrada dos profissionais de saúde, contando, inclusive, com a realização do diagnóstico nosológico por profissionais de outras áreas que não a médica. É o caso dos programas de prevenção e controle à malária, tuberculose, hanseníase e doenças sexualmente transmissíveis, dentre outros. Assim, a sanção do texto colocaria em risco as políticas públicas da área de saúde, além de introduzir elevado risco de judicialização da matéria”.

A palavra nosológico (do grego: nósos = doenças e logos = estudo, razão explicativa) significa etimologicamente estudo de doenças. Assim, para se realizar um diagnóstico nosológico faz-se necessária a história clínica do paciente (suas queixas referentes aos seus sintomas), exame físico (onde são evidenciados os sinais decorrentes) e quando necessários exames complementares, a partir deste conjunto o diagnóstico é estabelecido. Ratificamos que o corpo humano, embora didaticamente, o setorizamos, compartimentamos, ele funciona como uma engrenagem, as partes que compõem o todo se intercomunicam, quando sentimos uma dor no polegar a causa desta dor pode ser um tumor no cérebro e não uma alteração local. Daí uns dos motivos da maior extensão dos cursos de medicina (seis anos), onde na grade curricular as aulas de anatomia, fisiologia, e muitas outras que são comuns às demais profissões da saúde, possuem uma carga horária superior com maior grau de exigência de nossos alunos.
A essência do curso de medicina em todo o mundo estrutura-se no ensino do diagnóstico de doenças com detalhamento de cada uma e sua respectiva terapêutica. Sinais e sintomas, ou seja, o que o corpo do paciente nos mostra e o que ele está sentindo, são apenas etapas do diagnóstico nosológico. Para se chegar a uma conclusão diagnóstica faz-se necessário um conjunto de raciocínios e habilidades adquiridas no decorrer da formação médica. É notório que um mesmo sintoma pode significar uma gama de situações. Uma dor no ombro isolada pode ser uma simples contusão muscular, uma lesão articular traumática, artrite reumatóide e  até um infarto cardíaco que levará o paciente a óbito em minutos.
Sabemos que os termos Saúde e Doença apresentam  um conceito multifacetado conduzindo a uma série de discussões. Por isso,  mais adiante na Lei há a seguinte explicação:
§ 1º Diagnóstico nosológico privativo do médico, para os efeitos desta Lei, restringe-se à determinação da doença que acomete o ser humano, aqui definida como interrupção, cessação ou distúrbio da função do corpo, sistema ou órgão, caracterizada por no mínimo 2 (dois) dos seguintes critérios:

    • I – agente etiológico reconhecido;
    • II – grupo identificável de sinais ou sintomas;
    • III – alterações anatômicas ou psicopatológicas.

A justificativa apresentada de inviabilização dos programas é falaciosa; no que tange à alegação de que o profissional seguindo os protocolos chegará a uma conclusão diagnóstica fidedigna não é verdadeira: se assim o fosse bastaríamos ter um bom programa de computador onde colocaríamos todos os dados e solicitaríamos aos pacientes o preenchimento de um questionário e o computador forneceria o diagnóstico, tudo muito rápido. Protocolos são elaborados com o intuito de  otimizar os atendimentos, à medida que normatiza as condutas e chama a atenção aos sinais e sintomas de alerta, mas não substituem a  expertise do profissional habilitado.
Quando se fala que se interromperá as ações e programas, ela está um tanto mal informada, pois retiramos da lei da enfermagem ( 7.498, 25/06/1986, no inciso segundo ( Enfermeiro como integrante de equipe de saúde) e alínea c) que compete ao enfermeiro: “prescrição de medicamentos previamente estabelecidos em programas de saúde e em rotinas aprovadas pela instituição de saúde”, e na alínea g “participação na prevenção e controle das doenças transmissíveis em geral e nos programas de vigilância epidemiológica”.  Atividades que acontecem hoje em perfeita sintonia nos diversos programas como o do hipertenso, da tuberculose, em que o paciente após passar primeiramente com o médico, o diagnóstico é estabelecido e nas pró
ximas consultas ele é atendido pelo enfermeiro, que se evidenciar quaisquer alterações, que não são de sua competência, acionam o médico. O que acreditamos ser inadmissível, devido se colocar em risco a saúde da população, é delegar a um profissional não habilitado o diagnóstico da doença. Lembramos que um paciente com sinais e sintomas, epidemiologia positiva para tuberculose – de acordo com o protocolo – caso inicie apenas o tratamento tuberculostático sendo ignorado que este mesmo paciente pode ter outra doença, como a AIDS ( onde os exames laboratoriais podem ser normais devido a janela imunológica), este paciente além do risco de morrer também continuará transmitindo esta doença a outras pessoas.
A preocupação alegada com a judicialização também não é pertinente, pois pelo que  transcreveremos do seguinte parágrafo constante na lei, que foi vetado.
4°. Veto § 2º Não são privativos do médico os diagnósticos funcional, cinésio-funcional, psicológico, nutricional e ambiental, e as avaliações comportamental e das capacidades mental, sensorial e perceptocognitiva.
O texto é cristalino que as competências das outras profissões as quais também estão definidas em suas regulamentações está resguardado. Mais adiante no  parágrafo sétimo corroboramos mais uma vez:
§ 7º O disposto neste artigo será aplicado de forma que sejam resguardadas as competências próprias das profissões de assistente social, biólogo, biomédico, enfermeiro, farmacêutico, fisioterapeuta, fonoaudiólogo, nutricionista, profissional de educação física, psicólogo, terapeuta ocupacional e técnico e tecnólogo de radiologia.

2°. Veto:  VIII indicação do uso de órteses e próteses, exceto as órteses de uso temporário;
3°. Veto: IX – prescrição de órteses e próteses oftalmológicas;”

“Os dispositivos impossibilitam a atuação de outros profissionais que usualmente já prescrevem, confeccionam e acompanham o uso de órteses e próteses que, por suas especificidades, não requerem indicação médica. Tais competências já estão inclusive reconhecidas pelo Sistema Único de Saúde e pelas diretrizes curriculares de diversos cursos de graduação na área de saúde. Trata-se, no caso do inciso VIII, dos calçados ortopédicos, das muletas axilares, das próteses mamárias, das cadeiras de rodas, dos andadores, das próteses auditivas, dentre outras. No caso do inciso IX, a Organização Mundial da Saúde e a Organização Pan-Americana de Saúde já reconhecem o papel de profissionais não médicos no atendimento de saúde visual, entendimento este que vem sendo respaldado no País pelo Superior Tribunal de Justiça. A manutenção do texto teria um impacto negativo sobre o atendimento à saúde nessas hipóteses.”

Indicar significa dar a conhecer, fornecer indicação e prescrever por sua vez se refere a ordenar, estabelecer, receitar. Embora alguns autores considerem como sinônimos em algumas situações, isto não se aplica totalmente neste texto, pois o médico pode indicar uma determinada órtese e o prescritor ser outro profissional.
A manutenção deste artigo fortalece ainda mais o conceito de equipe multiprofissional, um dos pilares do atendimento no SUS, pois com o trabalho em conjunto o beneficiário será o paciente. Quando a equipe trabalha em sintonia como em um caso pós cirúrgico de cirurgia de prótese de quadril em que se faz necessário um período onde o paciente não pode andar, compete ao fisioterapeuta neste período a progressão, ou seja, a prescrição a este paciente de cadeiras de rodas, andadores e por fim a reabilitação da deambulação sem o uso daquelas órteses.
Ao nos remetermos ao parágrafo nono, ratificamos a importância do profissional optometrista que na própria definição de sua profissão retiramos: “A Optometria trabalha fora do “órgão globo ocular”, focado no sentido da visão, corrigindo miopias, hipermetropias, astigmatismos, visão “de perto” e aplica exercícios ortópticos, que não são doenças, são defeitos da visão. A Optometria não trata ou cura o “órgão globo ocular” (competência da medicina), não faz diagnósticos de doenças, não receita medicamentos”. O texto também ratifica mais uma vez o fortalecimento do trabalho multiprofissional, ou seja, após o diagnóstico de alterações apenas de refração, o médico e o optometrista em equipe conduzirão o caso do paciente. Vale ressaltar ao senhor que as alterações de refração são sintomas que podem advir de outras patologias, desde canceres próximos ao globo ocular ou no cérebro, derrame cerebral, uma crise de hipertensão arterial, dissecção da artéria carótida, glaucoma entre outras patologias menos frequentes e o profissional habilitado para realizar todo este diagnóstico diferencial é o médico.

5°. e 6°. Vetos- No parágrafo quarto que se refere a definição de procedimentos invasivos para os efeitos da lei, foram vetados:
       I – invasão da epiderme e derme com o uso de produtos químicos ou abrasivos;

     II – invasão da pele atingindo o tecido subcutâneo para injeção, sucção, punção, insuflação, drenagem, instilação ou enxertia, com ou sem o uso de agentes químicos  ou físicos

“Ao caracterizar de maneira ampla e imprecisa o que seriam procedimentos invasivos, os dois dispositivos atribuem privativamente aos profissionais médicos um rol muito extenso de procedimentos, incluindo alguns que já estão consagrados no Sistema Único de Saúde a partir de uma perspectiva multiprofissional. Em particular, o projeto de lei restringe a execução de punções e drenagens e transforma a prática da acupuntura em privativa dos médicos, restringindo as possibilidades de atenção à saúde e contrariando a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares do Sistema Único de Saúde. O Poder Executivo apresentará nova proposta para caracterizar com precisão tais procedimentos”.

A finalidade desses incisos do parágrafo quarto é explicar o que é procedimento invasivo que envol
vem tal lei, em momento algum interfere na atuação já previamente regulamentada dos outros profissionais; citamos o artigo 11 da Lei que regulamenta a Enfermagem onde cabe a este profissional: III- executar tratamentos especificamente prescritos, ou de rotina, além de outras atividades de enfermagem, tais como: a) ministrar medicamentos por via oral e parenteral. O que elucida é a indicação do ato que deverá ser efetuado pelo médico e a execução, dentro das prerrogativas da equipe multiprofissional, por outro profissional capacitado. Acreditamos que mais uma vez há o fortalecimento da equipe multiprofissional, onde cada um possui as suas prerrogativas técnicas e responsabilidades e o trabalho harmônico desta equipe fará o diferencial em benefício do paciente.
Em relação à alegação que influenciará a prática da acupuntura, não nos deteremos nisso, pois tal prática já foi motivo de apreciação pelo STJ, gostaríamos de enfatizar que a acupuntura faz parte da prática da Medicina Chinesa, milenar, e que há situações onde se utiliza tal técnica para anestesia na realização de procedimentos cirúrgicos invasivos e complexos, como uma tireoidectomia. Remetendo o quão complexa é tal técnica, ou seja, uma “simples agulhinha” dependendo do local onde é aplicada o paciente poderá parar de respirar ou até ter uma parada cardíaca e se o profissional não está habilitado para “corrigir” ou enfrentar tal intercorrência, com intubação traqueal e reanimação cardiopulmonar, o paciente poderá ir a óbito.

7°. 8°. e 9°. Vetos:
“I – aplicação de injeções subcutâneas, intradérmicas, intramusculares e intravenosas, de acordo com a prescrição médica;

II – cateterização nasofaringeana, orotraqueal, esofágica, gástrica, enteral, anal, vesical, e venosa periférica, de acordo com a prescrição médica;”

“IV – punções venosa e arterial periféricas, de acordo com a prescrição médica;”

“Ao condicionar os procedimentos à prescrição médica, os dispositivos podem impactar significativamente o atendimento nos estabelecimentos privados de saúde e as políticas públicas do Sistema Único de Saúde, como o desenvolvimento das campanhas de vacinação. Embora esses procedimentos comumente necessitem de uma avaliação médica, há situações em que podem ser executados por outros profissionais de saúde sem a obrigatoriedade da referida prescrição médica, baseados em protocolos do Sistema Único de Saúde e dos estabelecimentos privados.”

O impacto maior alegado é o SUS e mais uma vez percebemos um confusão. Como bem frisado anteriormente para fins desta lei todas as prerrogativas por lei já regulamentadas por todas as outras profissões serão asseguradas.
Nos casos onde não são prerrogativas das outras profissões, faz-se sim imprescindível a prescrição médica. Citamos algumas situações corriqueiras para melhor elucidação: 1°.- Aplicação de injeções em um paciente com alteração de coagulação ou em paciente com imunidade baixa devido à quimioterapia precisa da avaliação prévia do médico assistente. Uma simples injeção nestes pacientes podem advir complicações como infecção local e consequências por vezes dramáticas com extensas necroses da região e até a perda do membro afetado.
              2°.- A simples a repassagem de uma sonda nasogástrica no pós operatório imediato de uma laringectomia ( retirada da laringe por câncer, onde realizamos a reconstrução do trato digestivo superior a fim de que o paciente possa se alimentar posteriormente)  em um paciente que a perdera pode significar o insucesso total daquele extenso procedimento, pois bem sabemos que se formarão fístulas, falsos trajetos e outras complicações. Mesmo com a “boa vontade” do profissional faz-se imprescindível a prescrição médica avaliando-se os reais custos e benefícios e até contraindicando tal procedimento.
Ratificamos o que está na Lei 7498/1986 da Enfermagem no seu artigo 11 parágrafo III e alínea e que é prerrogativa desta categoria: executar tarefas referentes à conservação e aplicação de vacinas. Quando a Presidente alega que haverá prejuízos nas campanhas de vacinação também demonstrou um desconhecimento desta lei, que conforme o texto apresentado todas as prerrogativas por lei das outras profissões serão resguardas.

10°. Veto : “I – direção e chefia de serviços médicos;

 “Ao não incluir uma definição precisa de ‘serviços médicos’, o projeto de lei causa insegurança sobre a amplitude de sua aplicação. O Poder Executivo apresentará uma nova proposta que preservará a lógica do texto, mas conceituará o termo de forma clara.”

Infelizmente, percebemos mais uma vez uma confusão, pois quando falamos em Serviços de Professores nos referimos aos atos profissionais desta categoria; Serviços Advocatícios referentes aos advogados, Serviço de Enfermagem são referentes aos enfermeiros e Serviços Médicos são referentes aos médicos. A questão abrangida pela lei é meramente de ordem técnica, ou seja, as chefias dos serviços de enfermagem conforme Inciso I do Art. 11 da Lei 7498/1986: São privativas do enfermeiro a organização e a chefia de serviços de enfermagem. Também Inciso 2 do Art. 4º do Decreto 56464/1964: São funções do psicólogo: Dirigir serviços de psicologia em órgãos e estabelecimentos públicos, autárquicos, paraestatais, de economia mista e particulares Psicólogos devem ser chefiados por psicólogos. Em outras regulamentações isso também é verdadeiro.
Serviços médicos são atividades profissionais dos médicos. Não estamos afirmando que todas as atividades referentes à Saúde deverão ser chefiadas por profissional médico tanto é verdadeiro que  mais adiante na lei colocamos  o parágrafo único: A direção administrativa de serviços de saúde não constitui função privativa do médico.

N
osso país encontra-se no contínuo processo de aprimoramento e evolução de sua Democracia. Na área da saúde isso também é verdadeiro, há uma avalanche de conhecimento técnico-científico e paralelamente há uma maior preocupação com políticas de humanização onde um dos maiores marcos foi a instituição do SUS na constituição de 1988 o qual encontra-se em constante processo de implementação e adequação.
Nesse sentido acreditamos que o melhor caminho em benefício do povo brasileiro, no intuito de uma melhor eficácia do Sistema de Saúde vigente, é uma equipe onde os profissionais de saúde trabalhem em harmonia, com respeito às prerrogativas técnicas de cada profissão. Cada profissional passa por treinamentos específicos e ao término de sua graduação estará habilitado a realizar com expertise a profissão que escolheu.
Em todo processo civilizatório, as leis são regras que surgem para delimitar e definir determinadas atos sendo um dos objetivos principais amenizar ou sanar conflitos que possam existir.
A  Lei do Ato Médico vem ao encontro desse processo resguardando as prerrogativas técnicas dos Médicos, assim como estão resguardadas as prerrogativas técnicas das outras profissões que foram regulamentadas. Vem fortalecer o conceito de trabalho em equipe, trabalho multiprofissional ao imputar responsabilidade técnica ao médico que compõem tal equipe. Em momento algum fere as competências dos outros profissionais, apenas está regulamentando um profissão, tão antiga no mundo, mas que em nosso jovem país não possui uma regulamentação.

Atenciosamente

 

Entidades Médicas de Mato Grosso do Sul